Vestido de noiva

Nascera havia pouco. Bordado a quatro mãos, foi enviado diretamente do ateliê para uma grande loja no centro da cidade. Era o vestido perfeito, idealizado por toda mulher. Cada fio de sua renda, cada detalhe, mostrava uma incrível dedicação e precisão exibida em contornos marcantes, porém sutis.

Colocado na vitrine, em destaque, o vestido atraía e se apossava dos olhares de quem quer que passasse. Ali, ele descobriu o que era ser desejado. Não foram necessárias muitas provas até que a noiva perfeita o encontrasse. O encontro foi tão certeiro que ele parecia ter sido feito por encomenda para a noiva e noiva para ele.

Quando o casamento chegou, a noiva, ansiosa, foi ao seu encontro. Desembalado de sua capa protetora, foi colocado com cuidado em cima da cama e preparado para uso. Com a ajuda de algumas madrinhas, a noiva o vestiu, ajustando suas rendas e tecidos com delicadeza. O momento parecia mágico. Ele sentia o calor dos olhares, a excitação do momento, o ritmo acelerado do coração. Soube que estava no centro de um sonho. As lágrimas de alegria, os sorrisos admirados, tudo parecia orbitar ao seu redor. Sentiu-se, pela primeira vez, vestido de noiva.

Naquele dia, serviu ao seu propósito tal qual veio ao mundo. Foi conduzido ao altar, teve seu véu levantado, o aceite, o beijo, a festa… Ao anoitecer, foi arrancado na base da força e do desejo por um outro qualquer. Sua presença, naquele momento, já não importava. Largado ao chão, um novo dia clareou os céus quando, finalmente, foi recolhido.

Cuidadosamente dobrado, retornou à sua capa, sendo conduzido, por fim, ao fundo do armário. Os dias que se seguiram foram silenciosos. O vestido, cuidadosamente guardado, permanecia imóvel, envolto em uma escuridão tranquila. Um repouso merecido após a grande festa. Tinha servido ao seu propósito, vivido o que acreditava ser o auge de sua existência, pensou.

Mas o tempo, sempre impiedoso, começou a se alongar. Os anos passaram, e o vestido começou a se perguntar se algum dia voltaria a ser lembrado. No começo, havia pequenas esperanças. A noiva, que agora já usufruía de um status maior, o abria de vez em quando. Acariciava o tecido, sobrepunha-o sobre seu peito e o admirava no espelho lembrando do dia em que o usou. Porém, com o passar do tempo, essas visitas se tornaram raras, até cessarem completamente.

Foi então que um novo som invadiu a casa. O riso de crianças, o correr de pequenos pés pelos corredores. A filha do casal cresceu e já começava a fazer sua própria história. E, mais uma vez, o armário se abriu. A noiva, que agora já era mãe, tirou o vestido com um olhar emocionado, acariciando a renda com o mesmo carinho de antes. Desta vez seria sua filha a conduzi-lo ao altar.

Ele, que mal lembrava de sua natureza, voltou a sentir o calor dos olhares e a excitação de um coração apaixonado. O ciclo parecia repetir-se. Finalmente ele era vestido novamente. Com a mesma reverência e carinho, voltou ao centro de mais um sonho. A cerimônia, o beijo, a festa… tudo era familiar, mas, ao mesmo tempo, diferente.

Após mais uma grande festa, o vestido foi novamente guardado. Dessa vez, o silêncio pareceu mais longo. A casa, antes tão cheia de vida, começou a se aquietar. As risadas foram substituídas por um vazio, e os dias se tornaram mais arrastados.

Será que nunca mais seria vestido novamente? Nunca mais sentiria o calor dos corpos apaixonados? O bater de um coração acelerado? Nunca mais veria uma cerimônia, o beijo, uma festa? As dúvidas atormentavam e a cada dia que se passava elas ressoavam mais altas e constantes. O tempo, que já lhe agraciou, agora parecia um fardo. Ele se perguntava se era esse o fim de sua jornada — ser mera lembrança, enterrado nas profundezas de um armário esquecido.

Quando a filha tornou a abrir o armário, ele deu conta da terrível resposta. Marcada pelo tempo, a filha já não teria a quem entregar a beleza do vestido que um dia vestiu. A realidade se impôs: a neta da noiva, aquela que o vestido esperava ansiosamente vestir, nunca o clamaria. Não havia mais filhos, outra noiva. Ele, que foi o centro de momentos inesquecíveis, agora estava destinado a permanecer nas sombras.

A ideia de ser esquecido era insuportável e, em um lapso de revolta e coragem, decidiu que, de alguma forma, encontraria quem pudesse fazer dele o que ele havia nascido para ser: um vestido de noiva. Então, com uma delicadeza quase imperceptível, ele se moveu. Desceu da prateleira alta do armário e deslizou pela casa vazia chegando até a porta da frente. Com um esforço invisível, conseguiu abri-la e deparar-se com o mundo.

Pela primeira vez em tantos anos a luz do sol voltava a aquecer seus tecidos. O mundo exterior, por outro lado, já não era tão convidativo. A cidade, antes familiar, parecia ter se transformado. As ruas estavam mais agitadas e as vitrines abarrotadas de uma moda desconhecida. Seus bordados antigos, que um dia foram admirados por tantas noivas, agora pareciam deslocados no tempo.

A realidade que o confrontava não foi o suficiente para desencorajá-lo. Persistente, seguiu seu caminho, trafegando quase que despercebido. Procurava onde pudesse ser visto e, quem sabe, desejado mais uma vez. De loja em loja, buscava infiltrar-se em manequins e cabides expostos nas vitrines. Sua presença, embora quase insignificante, era suficientemente distinta para fazê-lo ser posto porta a fora.

Repetidamente rejeitado, a desesperança começou a se infiltrar em suas costuras. Ele, que um dia foi o centro das atenções, parecia destinado ao esquecimento. Vagando, parou em frente a uma vitrine onde viu seu reflexo pela primeira vez em muitos anos. Percebeu, finalmente, que o tempo havia deixado marcas. Suas rendas estavam amareladas, traças haviam consumido seu pano e o brilho, que uma vez encantou tantas pessoas, havia se apagado.

Permaneceu por alguns instantes diante da vitrine, encarando seu reflexo, desgastado e deformado pelo tempo. As rendas, que outrora adornaram sonhos, agora estavam frágeis e desfiavam lentamente. Ele compreendeu, de forma silenciosa, que seu tempo havia passado. Já não havia lugar para ele nas histórias que aconteciam ao seu redor. O mundo seguiu em frente, e ele, aos poucos, foi deixado para trás.

Vagou pelas ruas, sem pressa e sem esperança. Cada esquina que dobrava o levava para mais longe, cada passo fazia se desprender um pouco mais de si. Não havia para onde ir, não havia mais por quem esperar. Suas rendas, já quase irreconhecíveis, eram levadas pelo vento, deixando para trás pequenos fragmentos, como rastros para que o passado pudesse voltar a encontrá-lo.

Seu corpo, outrora tecido de promessas, agora era apenas um pedaço de pano abandonado. O vestido compreendeu, com uma aceitação melancólica, que seu fim não seria grandioso, nem digno de lembrança. Seria silencioso, lento, um desvanecimento nas ruas de uma cidade que não reconhecia. Carregado pelo vento ou por quaisquer outras forças que o levassem, encontrou-se estirado em uma viela qualquer. E assim ele ficou, imóvel, tremulando ao vento enquanto o tempo o consumia.

Abandonado e sem forma, percebeu que o fim havia chegado e em breve não restaria nada de si. Porém, ainda lhe sobravam as dúvidas. Seria melhor ter aguardado seu fim dentro daquele armário escuro e silencioso? Teria sido melhor contentar-se com o esquecimento do tempo e o seu desfazimento solitário, mas digno? Valeu a pena colocar-se à prova do mundo? Tais perguntas pairavam no ar como urubus em torno da carne fresca. Contudo, nenhuma delas importava. Àquela altura, nenhuma interrogação poderia ser suplantada por uma virgula, somente pontos finais.

Conformado com seu fim, resignava-se à total dissolução, quando, de repente, uma mão suave o tocou. Era um toque leve, quase imperceptível, como o roçar de uma brisa que precede o crepúsculo. A mão o ergueu do chão com uma delicadeza antiga, familiar. Deslizou pelos restos de suas rendas com cuidado, como se reconhecesse cada detalhe de suas rendas. E ali, suspenso entre o que restava e o que estava por vir, sentiu, pela última vez, a pulsação de um coração apaixonado.


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Lucas Machado

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul. É membro da Comissão da Jovem Advocacia e da Advocacia Empreendedora e Inovação da OAB Jabaquara/SP e integrante como Qualify no IFL Jovem - SP. Fundador, Editor e Escritor do Blog Jus Talks, destinado ao Direito e atualidades correlatas. Jovem, dedica-se a diversas áreas de atuação, principalmente no contencioso cível, societário, consumidor e empresarial, oferecendo soluções jurídicas eficientes e alinhadas às atualidades.
Vestido de noiva

Vestido de noiva

Um vestido de noiva, criado para brilhar no altar e viver o auge dos sonhos, agora jaz esquecido no fundo de um armário. Mas o silêncio não lhe basta. Ele anseia por um novo instante, por olhares que o redescubram, por um propósito além da lembrança. Será possível desafiar o tempo e renascer para outra história? Ou tudo o que foi feito para um único dia está destinado ao esquecimento?

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